MISSÃO DE DEUS E MISSÃO DA IGREJA: A misso Dei como novo paradigma missionário na teologia cristã


 

 “Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos,

batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,

ensinando-as a guardar tudo que vos ordenei.”

 (Mt 28, 19-20a)


    Desde 1972, a Igreja Católica no Brasil dedica o mês de outubro à missão. Neste ano de 2021, a Campanha Missionária Nacional traz como tema a missão de Jesus. Trata-se de um tempo privilegiado para refletirmos sobre a centralidade de Cristo na missão e nossa participação na missão divina. Após o evento Pascal, Jesus confiou aos seus apóstolos a missão de comunicar a todos os povos e nações a Boa Nova da salvação anunciada por Ele. (cf. Mt 28,18-20) A Igreja, enquanto depósito da fé recebida dos apóstolos, deve continuar essa obra. (LG 1) Ela é o sinal da íntima comunhão com Deus e da unidade de todo o gênero humano: sua tarefa é conduzir a humanidade à plena unidade em Cristo, através da pregação, dos sacramentos e da caridade. (LG 64) Portanto, a missão é um aspecto fundamental na vida da Igreja. 

    Ao longo da história, a missão foi compreendida de várias formas diferentes. Para alguns, ela era essencialmente soteriológica, isto é, tinha como objetivo a salvação das almas. Para outros, seu objetivo se restringia apenas à expansão da Igreja e de seu domínio numa determinada região. Há ainda aqueles que compreenderam a missão como o processo de instauração do Reino de Deus no mundo terreno. Uma coisa é certa: não é possível pensar a Igreja sem pensar a missão. Mas, o que é a missão na vida da Igreja? Qual a sua origem e finalidade? Como compreender a ação missionária da Igreja num mundo marcado pelo secularismo e pelo pluralismo cultural e religioso? Uma das formas de compreendermos a missão é pensá-la como misso Dei . Trata-se de compreender a missão da Igreja como participação na missão divina. Diante das novas realidades e desafios do mundo, pensar a Missão como missio Dei nos ajuda a entender o verdadeiro sentido da Missão na Igreja e a superar as tensões ideológicas que têm tomando conta de alguns ambientes eclesiais.

    Em sua infinita bondade e sabedoria, Deus se revela ao homem, mostrando-lhe seu projeto de vida e amor. Primeiramente, Ele se manifestou aos nossos pais na fé, convidando-os a uma íntima comunhão com Ele. (cf. Gn 1,27-28) Após sua queda, não interrompeu a revelação, mas prometeu a salvação a toda sua descendência. Ele estabeleceu uma aliança com toda a criação através Noé (cf. Gn 8,20-22), escolheu Abraão para ser o pai do povo eleito por meio do qual iniciaria seu projeto salvífico (cf. Gn 12,1-3), formou o povo de Israel após libertá-lo da escravidão do Egito, anunciou uma redenção radical por meio dos profetas, que uniria todas as nações numa nova e eterna aliança (cf. Jr 31,31-37) que se realizou em Jesus Cristo (cf. Lc 22,20). Nele, todos os homens são chamados a participar da divindade de Deus, através da ação do Espírito Santo, tornando-se seus filhos adotivos no seu único Filho. 

    Embora o conceito da missio Dei tenha nascido no contexto da teologia protestante e a expressão e não aparece propriamente nesses termos em nenhum documento conciliar, podemos afirmar que a noção de missão no Concílio Vaticano II vai perfeitamente ao encontro da compreensão da missão como missio Dei no cenário da teologia cristã protestante. Segundo o teólogo David Bosch, concílio deixa clara a necessidade duma ruptura com o conceito tradicional de missão. Daí a importância de se distinguir entre missão no singular e missão no plural. (BOSCH, 2014, p.28) A primeira diz respeito à missio Dei, já a segunda, aos empreendimentos missionários da Igreja nas suas diversas formas e lugares específicos. 

    Se Deus age e manifesta na história humana, esse deve ser também o ambiente em que a missão se realiza. A Igreja não pode limitar sua ação missionária a um determinado grupo ou região nem a uma conversão proselitista ou a implantação duma igreja numa determinado local. Toda a ação evangelizadora da Igreja deve estar a serviço da missio Dei e revelar o amor misericordioso de Deus. Compreender a missão dessa forma significa compreender toda a ação evangelizadora da Igreja como um instrumento de colaboração com o projeto salvífico de Deus. A missão não é obra da Igreja, mas do próprio Deus que se revela ao ser humano e o convida a participar da sua divindade. Portanto, a missão não encontra sua origem e natureza na eclesiologia nem na soteriologia, mas no mistério da Santíssima Trindade. Trata-se duma realidade essencialmente divina que conta com a participação e a colaboração humana. A missão é um dom Deus que brota da missão do Filho e do Espírito Santo. Toda ação evangelizadora da Igreja não deve estar a serviço dela mesma, mas do projeto salvífico que Deus, em seu desígnio, preparou para toda a humanidade. 

    De acordo com o teólogo Paulo Suess (2015, 632-633), os documentos do Concílio Vaticano II nos permitem assumir novas perspectivas teológicas acerca da missão e reorientar os rumos da ação missionária da Igreja. Primeiramente, eles sugerem uma passagem do território missionário à natureza missionária. A missão não se restringe a um determinado lugar geográfico. Pelo batismo, todo cristão é missionário. (AG 35) Em segundo lugar, o concílio nos permite falar duma missão inter gentes no lugar duma missão ad gentes, pois a missão se realiza entre os povos, igrejas locais e comunidades, numa reciprocidade entre os agentes e os destinatários da missão, valorizando o diálogo intercultural e inter-religioso. (LG 17) Outro passo significativo na compreensão da Missão na vida da Igreja é a superação da exclusividade salvífica pela partilha da graça da salvação. A salvação não se dá exclusivamente dentro da Igreja. (LG 16) O concílio também desloca a centralidade da ação evangelizadora de Igreja de si mesma para o Reino de Deus. Ele é o horizonte da missão. A comunidade missionária, enquanto Povo de Deus, é enviada a anunciar e buscar o Reino de Deus. (LG 5) Por fim, os documentos conciliares defendem e sugerem a enculturação. (GS 62) Não cabe a Igreja julgar e supervisionar as diversas culturas. Sua tarefa é identificar promover os sinais do Reino presente em cada uma delas, valorizando suas riquezas e particularidades. 

    Portanto, a missão não é apenas uma dimensão da Igreja ou uma iniciativa que compõe o seu quadro de atividades evangelizadoras. Ela é a origem, o fim e o fundamento da Igreja. (AG 2) Não é possível pensar a Igreja sem a missão. É nela que a Igreja encontra a sua razão de ser. A missão está diretamente vinculada à pessoa de Jesus Cristo. (LG 3) Ele é o missionário por excelência, enviado pelo Pai ao mundo. (Jo 5,36) No seu mandato missionário narrado por, Ele sintetiza toda sua vida e confia aos seus discípulos a missão de continuar a sua obra. (Mt 28, 16-20; Mc 16, 14-20) Desta forma, a Igreja não é apenas uma instituição social como outra qualquer. Antes de tudo, ela é chamada a ser sinal e mistério da presença de Deus no mundo e instrumento de salvação para toda a humanidade através do serviço, do testemunho e da pregação, participando, assim, diretamente, da missio Dei. Por isso, toda a atividade da Igreja deve ser pensada em chave missionária. “Missio Dei enuncia a boa nova de que Deus é um Deus para/pelas pessoas.” (BOSCH, 2014, p.28) A Igreja não é a detentora nem a protagonista da missão. Ela tem o privilégio de participar da missão de Deus, colaborando no seu plano de amor, através do seguimento fiel e autêntico de Seu Filho Jesus na força e no dinamismo do Espírito Santo. Reino de Deus e redenção do mundo: Essa é a missão de Jesus Cristo, essa é a missão, essa é a missão de todos os que se dizem cristão.


Padre Fernando Paulo

Paróquia Santíssima Trindade - Ponte Nova


REFERÊNCIA BILBIOGRÁFICA


BOSCH, David J. Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. Tradução Geraldo Korndörfer e Luís M. Sander. 4 ed. São Leopoldo: EST, Sinodal, 2002. 

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana. São Paulo: Loyola, 2000.

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTIMA GAUDIUM ET SPES. Concílio Vaticano II. In: COSTA, Lourenço (Org. geral e trad.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. (p. 539-661)

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTIMA LUMEN GENTIUM. Concílio Vaticano II. In: COSTA, Lourenço (Org. geral e trad.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. (p. 101-197)

DECRETO AD GENTES. Concílio Vaticano II. In: COSTA, Lourenço (Org. geral e trad.). Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997. (p. 431-489)

SUESS, Paulo. Missão/Evangelização. In: PASSOS, João Décio; SANCHEZ, Wagner Lopes (Coord.). Dicionário do Vaticano II. São Paulo: Paulinas, 2015. (p. 627-634)


Comentários

  1. Perfeito artigo do meu pároco Pe. Fernando Paulo.
    Em palavras claras expressa o significado nos tempos atuais.
    No Verbo Divino
    Pe. Anderson Luis de Souza, svd.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

A MISSÃO SE FAZ COM AMOR, POIS DO AMOR VEM A MISSÃO

Ite ad Joseph

Maria: Mãe, modelo e formadora dos missionários