A pureza do “coração” a partir da Bíblia e da tradição patrística
Pe. Adilson Luiz Umbelino Couto*
No mês dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, refletiremos sobre a pureza do coração, a partir de alguns
dados da Bíblia e também da tradição patrística. Diante da concepção do homem, da sua relação com Deus e
do caminho a percorrer para alcançar a salvação, imediatamente surge a questão: qual é o coração que deve
ser purificado?
Segundo a Bíblia, o coração recolhe em si a plenitude da vida espiritual, que deve abraçar o homem inteiro
com todas as suas faculdades e atividades. O termo “coração, lev, levav, kardia designa, na Bíblia, muito mais
que um simples órgão corporal; é usado, quase sempre, no seu sentido metafórico como a sede das diversas
funções psicológicas do homem. Na concepção semítica, o “coração” designa dois aspectos complementares,
um ligado à interioridade do homem (a parte do seu ser onde se situa a vida afetiva, intelectual, moral e
religiosa) e outro ligado à sede da inteligência e da sabedoria. Diante de Deus, o homem sente-se chamado no
mais profundo do seu “coração” (cf. Hb 4, 12), pelo que o mundo hebreu concebe o “coração” como a
interioridade do homem, o lugar dos seus sentimentos, memórias e ideias, projetos e decisões. Na antropologia
concreta e global da Bíblia, o coração do homem é a própria fonte da sua personalidade consciente, inteligente
e livre, o centro das suas opções decisivas, da lei não escrita (cf. Rom. 2, 15) e da ação misteriosa de Deus.
No AT, como no NT, o coração é o lugar onde o homem encontra Deus, encontro que se torna plenamente
ativo no coração humano do Filho de Deus.
O povo de Israel compreende que deve “amar a Deus com todo o seu coração” (Dt. 6, 5) vivendo de acordo
com as prescrições da lei dada a Moisés. Mas isto não basta se Deus não vier em seu auxílio, renovando o
“coração” humano perverso, dissimulado e sempre inclinado ao pecado (cf. Pr 26, 23-25). Diz ainda o Senhor
ao seu Povo que lhe arrancará o “coração” de pedra e lhe dará um “coração” de carne, para que caminhe nos
preceitos de Deus e cumpra as suas leis (cf. Ez 11, 19-20) pelo que deve ser constantemente vigiado (cf. Pr 4,
23). O homem tem necessidade de um coração novo, temente a Deus, e pronto a reverenciar o seu Criador, e
só o pode possuir na medida em que está no poder de Deus conceder-lho (cf. Jr 32, 39-40).
Também a comunidade cristã primitiva compreende o “coração” como o lugar de onde brota o pecado. Do
coração “procedem os maus pensamentos, as mortes, os adultérios, a prostituição, os furtos, os falsos
testemunhos e as blasfêmias” (Mt 15, 19 s.). Mas a mensagem cristã vai mais longe que a compreensão do AT
ao indicar que Deus oferece agora a salvação através do seu Filho Jesus Cristo, que é “manso e humilde de
coração” (Mt 11, 29), que guarda os “corações” dos seus fiéis (cf. Fl 4, 7). Jesus chama de bem-aventurados
todos aqueles que são “puros de coração”, prometendo-lhes a visão do próprio Deus (cf. Mt 5, 8)
O pensamento patrístico, neste caso, é fortemente influenciado pela filosofia grega. Platão vê o “coração”
como a sede dos apetites sensitivos ou das paixões. O estoicismo, que também influenciará o pensamento dos
Padres orientais, fazia do “coração” a sede do próprio intelecto e do pensamento. É a partir daqui que os Padres
gregos de inspiração neoplatónica e estóica vão entender o “coração” como o lugar do nous. Gregório de
Nazianzo, mestre de Evágrio Pôntico, chega mesmo a identificar o “coração” puro com o aspecto intelectual
da alma (to. dianohtikon).
O “coração” é a parte espiritual do homem, representada como corpo interior e invisível, lugar dos sentimentos
e das sensibilidades. É, por oposição ao corpo visível, a parte escondida do homem, que só Deus conhece,
onde são visíveis os sinais que permitem um sério discernimento. Este é ainda o lugar misterioso da “essência
da alma” e o centro e “raiz da vida”, através do qual os Padres vão dizer que Deus entra na vida do homem
com todas as suas propriedades e riquezas. Neste sentido, já em Orígenes, que exerce uma grande influência
sobre o monaquismo do Egito, o “coração” era visto como a sede dos sentimentos humanos e, por isso, é a
parte escondida do homem que só Deus conhece e que permanece sempre um mistério.
Para os Padres gregos kardia, psiché, e nous designam realidades muito vizinhas, mas que não se confundem.
Num sentido mais geral, kardia parece ser mais abrangente que psiché, e pode compreender, com aquilo que
lhe é próprio, mais do que o princípio da via sensitiva; por seu lado, nous é, para estes Padres, o interior do
coração. Em relação à ação de Deus, a alma é o conjunto das atividades interiores do homem, que se pode
dispor à graça; o “coração” é o lugar onde a graça se torna visível quando a alma se dispõe em direção a Deus.
Por isso, o “coração” é, por excelência, o lugar da vida espiritual e o lugar da contemplação, pois é no
“coração” purificado que os cristãos podem “ver” a Deus. Assim, o amor a Deus é o amor afetivo que se tem
com todo o “coração”, com toda a alma e com todo o pensamento. Se, na terminologia monástica, o “coração”
é o lugar dos vícios e das paixões, é também o receptáculo das virtudes e da graça divina.
No âmbito ocidental, encontramos em Clemente Romano a noção de “coração” associada à visão das coisas
celestes, por intermédio de Cristo: “Por seu intermédio (de Jesus Cristo) contemplamos as alturas dos céus,
vemos como num espelho o seu imaculado e sublime rosto, são abertos os olhos do coração”. Cipriano de
Cartago associa, por sua vez, o “coração” ao homem interior e à oração, dizendo que “Deus ouve o coração,
não a voz”. Ainda na tradição cristã latina, Agostinho de Hipona usa sobretudo o termo cor no seu sentido
metafórico (psicológico, filosófico-antropológico e teológico), fazendo-o acompanhar de constantes citações
bíblicas. O “coração” é o homem todo, na sua interioridade e no seu dinamismo espiritual. Nas suas obras,
expressões como ex corde suo e ex intimo suo vêm normalmente associadas, assim como cor e homo interior,
cor e mens, cor e conscientia. O “coração” é visto como o princípio do pensar e do agir, que permite ao homem
conhecer e discernir. Para este Padre da Igreja, o “coração” é, ainda, o lugar por excelência da ação Trinitária
no homem: Deus habita no mais profundo do “coração” humano; este é iluminado por Cristo, que fala ao
homem no íntimo do seu “coração” e o associa à sua Páscoa; é dilatado pelo amor de Deus, fruto da ação do
Espírito santo. Nas suas Confissões, ao reconhecer a sua debilidade diz: “no meu coração, onde eu sou como
sou” (Conf. XIII, X, 3,4). Deste modo atribui ao “coração” a raiz da vida moral: “tudo aquilo de que falo é
como uma árvore, tem as suas raízes no coração, porque as ações realizadas procedem da raiz do coração; se
aí plantares a paixão brotarão espinhos; se aí plantares a caridade, brotarão flores e frutos”. A espiritualidade
do “coração” é uma característica de Agostinho, que vê neste órgão o lugar onde Deus coloca a sua morada,
sede de encontro entre o livre arbítrio do homem e a graça de Deus. A expressão oculus cordis torna-se a
faculdade epistemológica que permite ao homem superar a realidade sensível e ascender à visão das coisas
celestes. O “olhar do coração”, tornando-se puro, é capaz de ver Deus que habita no mais profundo de si
mesmo: “Quem conhece Deus com o olhar do coração? Se o olhar é puro, é suficiente para alcança-lo. Por
outro lado, se o alcança, é por um contato imaterial e espiritual, contudo não o compreende; e isto se está
purificado. E o homem torna-se beato no contato do coração com quem sempre permanece beato e é em si
mesmo bem-aventurança perpétua”.
Por fim, o Bispo de Hipona associa o termo “coração” à misericórdia, encontro do homem convertido com
Deus e encontro do homem com os seus semelhantes. O “coração”, unido à misericórdia e à amizade constitui,
assim, um trinômio pertencente “a uma mesma família semântica cujos termos assumirão, com Agostinho,
uma modulação antropológico-espiritual de carácter sapiencial densa de mistério: “or” designa o homem
“misericórdia” e “amigo”, capaz de comunicação com as pessoas, começando por Deus.
*Professor e Formador no Seminário São José de Mariana
Maravilhoso artigo, este mês dedicado aó Sagrado coração de Jesus. Que desperte mais vocações religiosas, mais jovens descubram esse presente maravilhoso de Deus, que é colocar a serviço da igreja de Cristo. Ajudando a salvar almas e na construção do reino de Deus no mundo.. Deus abençoe todos seminaristas.🙏🙏
ResponderExcluirAgradecemos pelo comentário e pelo apoio! Reze sempre por todos os padres e seminaristas, especialmente os de nossa Arquidiocese de Mariana!
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